quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Antes da guerra com os mosquitos- Contexto da viagem determina se é preciso tomar remédio contra malária

Quem vai à Amazônia teme voltar com malária. Como não há vacina, uma das formas de se prevenir é tomar medicamentos que evitam os danos dos protozoários causadores da doença no organismo. Os efeitos colaterais dos medicamentos preventivos, porém, podem ser intensos – um deles é ampliar a sensibilidade à luz e facilitar a ocorrência de queimaduras de pele por causa da exposição ao sol. Usar ou não medicamentos preventivos, de modo que os benefícios superem os inconvenientes, depende de variáveis como o lugar para onde o viajante vai, o tempo de permanência, a estação do ano em que viajará e a proximidade dos postos de atendimento médico, de acordo com trabalhos recentes de um grupo de pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) que delimitou os riscos de se contrair malária no Brasil, na África e em três países asiáticos, Tailândia, Indonésia e Índia. No mundo todo, a cada ano, a malária é diagnosticada pela primeira vez em 200 milhões de pessoas, das quais 100 milhões vivem na África e, desses 100 milhões, 1 milhão são crianças. No Brasil, cerca de 300 mil pessoas têm malária por ano, bem menos que os 6 milhões de casos registrados por ano no início da década de 1940.

O risco de ser picado pelos mosquitos do gênero Anopheles, transmissores da malária, é mínimo no inverno amazônico, que corresponde à época das chuvas, de dezembro a fevereiro. Cresce no outono e atinge o máximo no verão amazônico, que corresponde à época da seca, que tem seu pico entre julho e agosto. “O verão é a pior época para chegar, porque os mosquitos transmissores estão na atividade máxima”, diz Eduardo Massad, um dos coordenadores do grupo de pesquisa que delimitou os riscos de contágio considerando não só o clima, mas também a velocidade com que o Anopheles pode se reproduzir, infectar-se ou infectar as pessoas. Em um trabalho publicado na Malaria Journal em 2009, Massad, Marcelo Buratini e Francisco Antonio Bezerra Coutinho, da USP, Ronald Behrens, da London School of Hygiene and Tropical Diseases, afirmam que o risco de um viajante que circule pela Amazônia no verão contrair malária é pelo menos 10 vezes maior do que se viajasse no inverno.

O destino e o tempo de permanência também pesam. “Quem vai a um resort no rio Negro, uma região de águas escuras onde quase não tem malária, para passar três dias, não precisa tomar medicamentos profiláticos”, diz o médico Jessé Reis Alves, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas. “Dependendo do objetivo e das circunstancias da viagem, o risco pode variar até em um mesmo lugar”, observa o médico infectologista Marcos Boulos, professor da Faculdade de Medicina da USP. “Quem vai de mochila para acampar ao ar livre tem muito mais risco de pegar malária do que quem fica em um hotel cinco estrelas.”

As medidas de prevenção começam pela tomada de consciência do risco de contrair a doença na região para onde se está indo. “Muitas pessoas viajam para áreas de alto risco de malária sem saber”, diz Alves. É importante também conhecer os sintomas iniciais – febre, dores pelo corpo, vômitos, diarreias, perda de apetite, tontura e cansaço. O tratamento é simples e eficaz, desde que o diagnóstico correto seja feito logo após o surgimento dos primeiros sintomas, evitando os danos no fígado, nos pulmões e no cérebro que acompanham os quadros mais graves.

É bom conhecer os hábitos básicos do Anopheles darlingi, o mosquito transmissor da malária no Brasil, que sai dos esconderijos ao anoitecer e ao amanhecer para se alimentar. Mas nem sempre é assim. Na África, o Anopheles gambiae, outro transmissor, ataca também durante o dia. Mais diferenças: no Brasil, nem todos A. darlingi estão infectados com o agente causador da doença, que aqui é geralmente o Plasmodium vivax, responsável por uma forma menos grave da doença. No Brasil a malária é essencialmente rural e raramente aparece em cidades. Por fim, há uma rede de atendimento médico, com cerca de 3 mil postos de diagnóstico e tratamento na Amazônia. Na África, o A. gambiae apresenta um alto grau de infestação – portanto, maior risco de transmissão – em geral com o Plasmodium falciparum, que causa uma forma mais grave e por vezes fatal de malária. Lá a doença ocorre em ambientes rurais e urbanos e os postos de atendimento médico são raros.
Outra medida preventiva é aplicar repelentes sobre a pele e usar camisas e calças compridas, principalmente nos horários ou nos lugares em que os mosquitos são mais frequentes, já que o risco de contrair malária aumenta de acordo com o número de picadas de mosquitos com Plasmodium. Os médicos recomendam que os viajan-tes, quando estiverem em lugares onde a malária é comum, coloquem mosquiteiros ou telas sobre as redes ou camas antes de dormir, de preferência em lugares cobertos. “O risco de pegar malária cai até 80% quando se faz corretamente a proteção contra as picadas do mosquito”, diz Alves. Como alternativa, quem não quiser começar a tomar medicamentos antes da viagem pode levar os antimaláricos quando for a uma região de alto risco e usá-los caso tenha febre, mesmo sem fazer exame de sangue que confirme a doença.

Os médicos dizem que a medicação deve complementar essas medidas preventivas e não ser adotada isoladamente, por causa dos efeitos colaterais indesejados. Além de ampliar a sensibilidade à luz solar, a cloroquina, o antimalárico mais usado atualmente no Brasil, pode causar enjoos. A mefloquina, apesar de eficiente, deixou de ser usada oficialmente por eventualmente ampliar o risco de distúrbios psiquiátricos e a tendência ao suicídio. Boulos conta de um executivo alemão que trabalhava em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, e tomou cloroquina durante três anos para se prevenir, mesmo sem necessidade; não pegou malária, mas ficou cego, por causa do uso exagerado do remédio. Outro inconveniente é que, para funcionar adequadamente, o tratamento com esses medicamentos precisa começar uma a duas semanas antes da chegada à área de risco, prosseguir enquanto o viajante estiver lá e só terminar quatro semanas após a volta. Uma viagem de duas semanas, portanto, implica tomar remédio durante nove semanas.
Além disso, os antimaláricos funcionam melhor contra o Plasmodium falciparum, menos frequente no Brasil que o P. vivax. Por fim, há ainda o risco de o Plasmodium – principalmente o falciparum – se tornar resistente aos medicamentos. Nesse caso, um viajante prevenido, que tomou antimalárico, pode sentir febre e cansaço extremo, sinais típicos da malária, mas pensar que esses sintomas não são dessa doença, quando na verdade o remédio que tomou é que não está funcionando para combater Plasmodium resistentes à medicação.

Em novembro de 2010, dois viajantes – um vindo da Nigéria e outro da Costa do Marfim – morreram de malária em São Paulo depois de passarem por hospitais cujos médicos não souberam identificar a doença. “Ao voltar, caso tenha febre alta, o viajante deve falar para o médico que viajou e insistir para fazer o teste contra malária”, enfatiza Alves. Às vezes, não ocorre aos médicos que a febre e o mal-estar podem ser sintomas de malária, porque, se vivem nas capitais do Sudeste ou Sul do país, provavelmente nunca a diagnosticaram.
“A responsabilidade da prevenção cabe ao serviço de saúde, aos próprios viajantes e às empresas, quando enviam os funcionários para áreas de alto risco”, diz Alves. Segundo ele, quem vai trabalhar em um país da África como Angola, onde a malária é endêmica, deveria adotar todas as medidas de precaução possíveis.

“Um período de permanência de 15 dias na África já justifica o uso de medidas preventivas, incluindo medicação”, diz Massad. Graduado em física e em medicina, ele esteve à frente do estudo que comparou o risco de contrair malária na África, no Brasil e em três países asiáticos, Tailândia, Indonésia e Índia. A África emergiu como região de alto risco, o Brasil – e mesmo a Amazônia – como risco médio, em princípio dispensando o uso de medicação no caso de estadas breve, já que estatisticamente surgem dois casos de malária em cada mil viagens para o norte do Brasil, e os três outros países como risco baixo.

Em um trabalho aceito para publicação no Malaria Journal, Massad, Behrens e Coutinho fazem uma análise de custos e de benefícios para adotar medidas de prevenção contra malária em larga escala para quem viaja para países ou regiões em que a doença é comum. A conclusão pode soar desconfortável, mas Massad lembra que a análise de custos é fria. “Do ponto de vista de saúde pública”, diz ele, “é mais barato tratar quem pegar malária do que evitar que todo viajante pegue a doença”.

A abordagem brasileira é evitar o uso de medicação, a não ser que algo realmente a justifique. “Faço trabalho de campo na Amazônia desde 1974, nunca tomei medicamentos profiláticos e nunca peguei malária”, afirma Boulos. “O mais importante é ter consciência do risco.” Nem sempre, porém, Alves e os outros médicos do ambulatório dos viajantes do Emílio Ribas conseguem explicar rapidamente a um turista estrangeiro que não precisa se preocupar com malária apenas porque está indo ao Rio de Janeiro.
Um debate em Miami - Enganos desse tipo são comuns. Um mapa do livro CDC health information for international travel, recém-publicado pela Universidade de Oxford, indica que toda a América do Sul é de alto risco de malária, quando na verdade a doença está restrita a algumas áreas da Amazônia. “Normalmente os europeus entendem rapidamente que o risco é diferente, mesmo na Amazônia, mas os norte-americanos não abdicam da medicação preventiva”, diz Alves.

Em um congresso sobre infectologia realizado em março de 2010 em Miami, nos Estados Unidos, Boulos participou de uma mesa-redonda sobre prevenção de malária por meio de medicamentos e argumentou que o repelente e outras medidas é que deveriam ser priorizados. Ao seu lado estava Paul Arguin, do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), defendendo a posição oficial dos médicos dos Estados Unidos, que temem que os viajantes voltem com malária e morram ou espalhem a doença porque não conseguiram fazer o diagnóstico correto. “Não há por que usar medicamentos contra malária onde não há malária”, Boulos argumentou. “O risco de pegar malária em São Paulo é o mesmo que em Nova York.” O debate terminou sem que as visões mudassem.

Vírus e bactérias podem se propagar rapidamente, principalmente entre pessoas que nunca tiveram contato com os microrganismos. Há poucos meses, duas pessoas em São Paulo e outra no Rio de Janeiro foram diagnosticadas com o vírus chikungunya, comum em vários países da África e da Ásia – o mosquito transmissor é o Aedes, o mesmo da dengue. “Novas doenças podem aparecer e se espalhar rapidamente, porque as pessoas nunca tiveram contato com os agentes que as causam e não desenvolveram defesas contra eles”, diz Boulos. Por essa razão é que ele prevê “uma grande epidemia” de dengue tipo 4 no próximo verão, principalmente nas cidades onde os outros tipos do vírus da dengue já contaminaram as pessoas.

“Do ponto de vista teórico, matar os mosquitos transmissores, principalmente durante os surtos, é a medida mais eficiente de deter a dengue”, diz Massad. “As campanhas públicas enfatizam a destruição de criadores de mosquitos em águas paradas, mas desse modo o poder público se exime de responsabilidade de matar mosquito.” Para ele, a política de controle da dengue deveria combinar todas as estratégias.

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